quinta-feira, 13 de junho de 2013

Verdade ou mentira?

Já estava tarde, mas ela não era intimidada pelas ruas desertas do centro da cidade. Tampouco pelo frio de ranger os dentes que fazia naquele fim de outono. O cigarro entre os lábios, terceiro só nos últimos 45 minutos, fazia-a sentir-se menos sozinha. Na mente, ainda aquela sensação esquisita de algo que aconteceu, mas que não lembrava de ter vivido, mesmo que a sensação fosse quase palpável. Aqui dentro é de verdade, mas quando vira fala... 

A fumaça das substâncias tóxicas do cigarro se misturou com o ar gélido que fazia a respiração condensar. Há menos de quinze minutos ela ainda estava dentro daquele bar. Ficaria mais algumas horas no aconchego dos amigos e do copo de bebida forte que a esquentava. Mas a sensação, aquela sensação estranha que começara a acompanhar, voltou. Desde o dia em que insistira em entrar naquele teatro. Quanto tempo fazia? Uns dois meses e meio, três no máximo. A estranheza, a mesma que sentiu desde o momento em que colocou os olhos sobre a figura em cima do palco, estava a cada dia, hora, minuto talvez, mais pungente. Eu te observo na porta do teatro e você não me vê. Eu te observo na porta do teatro e você não me vê. Eu te observo na porta... A voz simplesmente não saia de dentro dela. Olhou em volta, a impressão de alguém a seguindo também era constante agora. A rua continuava deserta.

É que eu acho que quando a gente bebe fica tudo meio torto, colorido demais. Parece que as coisas não são de verdade. Lembrou-se de alguém lhe dizendo isso. Talvez tivesse bebido demais. Estivesse bebendo demais. Tinha certeza que alguém a estava seguindo desde que saíra do bar. Na outra noite também. Ele estava lá, ela podia sentir. A figura que encontrou em cima do palco. Uma última tragada no cigarro; os carros que passavam, em cima do viaduto ou ao lado dela na rua, estavam em um mundo paralelo. A guimba misturou-se à sujeira, já quase como um elemento de decoração dos prédios, da calçada. Com a cabeça girando, tirou um maço ainda fechado de dentro da bolsa. Odiava o primeiro. Tão perfeitamente comprimidos dentro da pequena caixa, quase a faziam desistir do vício. Os dedos congelados e com as articulações doendo só a deixou mais ansiosa. Quase três meses de um aumento gradativo na quantidade de cigarros. Três meses. Nesse ritmo já estava quase em três maços.

Virou à esquina de alguma rua movimentada; uma torrente se pessoas sendo jogadas para fora das casas noturnas. Ou era o que a imaginação dela a deixava pensar. Verdade ou mentira? A voz ecoou mais uma irritante vez na mente. Na mente. A voz. Verdade. Mentira. Real ou não, quem se importava? Continuou andando entre a multidão de pessoas que a olhavam. Um som amarelo. Um som violento. Um som de três meses ecoou da rua que a perseguia. Ou seria dele? Olhou para trás mais uma vez. Ninguém. Um ninguém repleto de gente.

Oi. Dá licença. Você tem fogo?”, distraída, quase chocou-se com um homem parado à frente dela. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, até mesmo que não havia entendido a pergunta, alguém o puxou pelo braço e ambos saíram andando. Mas era ele. Um ele que ela não sabia realmente quem, mas ele. A figura do teatro. A voz da mente. Verdade ou... impediu, com um chacoalhão de cabeça, a voz de continuar sua lamuria costumeira.

Continuou andando como se nada de extraordinário estivesse lhe acontecendo; como se o mundo não estivesse prestes a despencar de sua órbita. As pessoas ao seu redor continuavam a sufocando com uma cacofonia opressora. Talvez o mundo estivesse completamente ciente da condição deplorável na qual se encontrava aquela mente e só quisesse a satirizar com todos essas peças que estava lhe pregando. Impaciente, segurou o cigarro entre os lábios e puxou o celular e os fones de ouvido de dentro da bolsa. Música. Era disso que ela precisava. Música. Música. Música! É que quando eu escuto música parece que tudo vira uma coisa só. Quando eu escuto música parece que eu me misturo com o mundo... Faz a gente esquecer. Ele falava isso. Ou ele falara, uma única vez, agora, na mente dela.

Ela continuou sua caminhada sem rumo. Já não estava mais entre ruas movimentadas; era apenas ela e as músicas. Parecia até que a playlist estava sincronizada com o estado de espírito dela: Lotus Flower – Radiohead, Asleep – The Smiths, Sex on fire – Kings of Leon, Sorrow – Pink Floyd, Pour que l'amour me quitte – Camille, Blue – Cat Power, How to disappear Completely - Radiohead... Talvez tudo se resumisse mesmo àquelas músicas sem fim que ela não escutava, por mais que estivessem todos os acordes, transformados em ondas sonoras, transmitindo impulsos bioelétricos até seu cérebro. Ela estava fechada em um universo sem som, sem nada. Apenas o corpo e uma alma que era possível nem lhe pertencer, já que estava repleta dele.

As pernas já cansadas falharam miseravelmente na tentativa de atravessar a rua, jogando-a de encontro à rua ainda molhada da chuva que caíra mais cedo. Prostrada, com as mãos e pernas úmidas, ela soltou um murmúrio mal identificável. Era a voz dele tomando vida dentro do corpo dela. Eu quero ouvir o amarelo, o violento e o tempo. 

Sem saber precisar como, ela levantou-se e voltou a caminhar, desistindo de atravessar a rua. Tirou da bolsa mais um cigarro: seria possível que o vício a fizesse sentir? A ideia era sentir alguma coisa. Qualquer coisa, na verdade. Lembrou da peça; em cima do palco, ela – a atriz ou a personagem, não saberia diferenciar - falando. Não era ele. Olhou mais uma incessante vez ao redor. Sem ninguém. Nem mesmo os mendigos que costumavam transbordar das ruas. Os carros continuavam passando ao seu entorno. Tudo continuava passando e ela ainda não sentia. Não sabia. Ignorava cada impulso nervoso que o corpo dava em alerta a esse comportamento tão negligente.

Com fumaça saindo pela boca, ela olhou para o prédio imponente que se erguia à sua frente. Era ali. O teatro. Agora uma estrutura abandonada e cheia de cartazes velhos. Ela estivera ali há tão pouco tempo. Afinal, o que eram três meses? Semicerrando os olhos para enxergar à pouca luz, conseguiu ler em uma das faixas já desbotadas pelo tempo “Últimas apresentações! Temporadas até o final de julho! Não perca essa oportunidade!”. A cabeça já sensível dela começou a girar. Final de julho... final de julho, final de julho. A porra do final de julho! Isso já fazia quase um ano. Ela correu até as portas fechadas do prédio e começou a socá-la, uma inútil tentativa de obter qualquer resposta. Você pode ficar o tempo que você quiser. Você pode me perguntar o tempo que você quiser. A voz, essa maldita voz que não parava de perturbá-la. Desde quando mesmo?

Sem conseguir mais processar qualquer pensamento que fosse, viu-se escorrendo pela porta de madeira antiga: as unhas, já curtas de tanto que roía, deixaram pequenos rastros de sangue à medida que eram infincadas na madeira. Na mente apenas uma nuvem de fumaça cinzenta. No entanto, clara como a mensagem escrita naqueles cartazes, ela ouviu. Ele, aquele ser insuportável que a queria ver destruída, sempre ele. Era mentira. 

No celular, para completar com chave de ouro o espetáculo que ela acabara de protagonizar, começou a tocar Bolero, Maurice Ravel. Música em dois compassos repetidos cento e sessenta e nove vezes totalizando quinze minutos e quarenta segundos. Ela ouviu. Ouviu e lembrou-se das cortinas se fechando enquanto ouvia aquela famosa música. E ela sentiu. Um peso. Um peso tão grande.

Era mentira foi o último murmúrio que conseguiu ouvir.

- Thereza Rastro

(as partes em itálico foram retiradas de peças e textos do magnífico autor Rodrigo Nogueira.)